Em março de 2017, foi publicado o artigo de Kika Bradford e Nelson Brügger, no site da UIAA (União Internacional das Associações de Alpinismo). O artigo, faz parte de uma iniciativa da Comissão de Acesso da UIAA, onde os representantes de diversas nações oferecem um panorama sobra o esporte em seu país e os desafios encontrados para acessar áreas de prática bem como as contribuições da comunidade de montanha para a conservação das mesmas.
2 de março, 2017
UM GUIA PARA O ACESSO À ESCALADA E TRILHAS EM PARQUES BRASILEIROS
A série de publicações da Comissão de Acesso da UIAA sobre acesso, conservação e cultura de escalada continua com um guia para o Brasil, cortesia de Nelson Brügger e Kika Bradford, membros da Comissão de Acesso da UIAA da CBME.
O Brasil é bem conhecido por suas festas de carnaval, praias, futebol (esqueçamos a Copa do Mundo de 2014..) e doenças transmitidas por mosquitos. Além disso, a Floresta Amazônica é mundialmente conhecida por sua biodiversidade. O mundo não sabe, no entanto, que o Brasil também tem uma comunidade ativa de escalada e caminhada, muitas trilhas e áreas de escaladas, e desafios complexos no que tange acesso às montanhas e conservação. A Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada (CBME) trabalha duro para negociar melhores condições de acesso para escaladores e montanhistas, bem como promover a conservação de áreas montanhosas nos parques que visitamos.
Contexto histórico
O primeiro acesso fechado no Brasil remonta aos tempos coloniais, quando as autoridades portuguesas proibiram as tribos nativas de usarem os caminhos Peabirús (do Guarani). Esses caminhos vão desde o Atlântico até a o Pacífico cruzando onde hoje se localizam o Brasil, Paraguai, Bolívia e Peru. O explorador espanhol Alvár Nuñes Cabeza de Vaca, em 1541 (também o primeiro a “descobrir” as Cataratas do Iguaçu, hoje Parque Nacional) foi o primeiro a escrever sobre essas trilhas.
A comunidade urbana brasileira se voltou para a natureza com fins de lazer sob influências europeias no século XIX. Esta mudança de paradigma é vista nas descrições das viagens de muitos naturalistas, bem como nos passeios da família real ao cume do Corcovado (a localização da estátua do Cristo Redentor no Parque Nacional da Tijuca, Rio de Janeiro).
A história de escalada foi marcada por dois eventos simbólicos: a subida da cordilheira montanhosa Marumbi, no sul do estado do Paraná em 1879, e a icônica escalada do Dedo de Deus, no estado do Rio de Janeiro em 1912. Estas subidas estimularam a criação de clubes de montanhismo, sendo que o primeiro a ser criado foi o Centro Excursionista Brasileiro em 1919.
O Dedo de Deus, localizado no Parque Nacional Serra dos Órgãos, foi escalado pela primeira vez em 1912 por um grupo de escaladores brasileiros. Escaladores e caminhantes compraram parte dessas terras em 1940 e doaram ao parque nacional. Foto: André Ilha
Primeiro parque nacional
Devido à cultura, à economia, à falta de visão, entre outros, o governo brasileiro só veio designar o primeiro parque nacional em 1937 – o Parque Nacional de Itatiaia. Embora nesta época alguns cidadãos da elite urbana estivessem preocupados com a conservação, as pré-condições para esta designação foram a emergente industrialização e as leis trabalhistas que proveram tempo livre para a classe trabalhadora, bem como a ressignificação da natureza anteriormente citada. Não foi coincidência o Parque Nacional de Itatiaia ser praticamente equidistante dos três maiores centros urbanos da época, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro: o lazer nas montanhas era necessário para angariar o apoio para o Parque.
Hoje em dia
Hoje, o Brasil tem 79 milhões de hectares de áreas protegidas (não incluído terras de populações tradicionais[1]), com diferentes graus de conservação e acesso. A lei estabelece que os parques nacionais devem ser criados para a conservação, pesquisa, recreação, ecoturismo e educação ambiental. Uma quantidade significativa das escaladas e caminhadas no Brasil está localizada dentro de áreas protegidas, o que deveria ter proporcionado uma situação ideal. A realidade é, no entanto, diferente.
A maioria dos parques é o que chamamos de “parques de papel”, ou seja, eles são criados legalmente, mas não têm recursos de infraestrutura. Vários parques têm apenas um servidor em tempo integral. Quase nenhum dos parques tem 100% de terras públicas regularizadas (a legislação brasileira afirma que os parques têm de ser 100% públicos) e os órgãos ambientais sofrem para conseguir recursos financeiros.
Desde a década de 1970, o paradigma dominante nos órgãos ambientais defende a cultura do gerenciamento de “parques fortaleza” excluindo os visitantes dos parques e declarando-os (ou seja, nós, escaladores e caminhantes) o inimigo n º 1 da conservação.
Alguns dos preceitos que embasam esta gestão de “parques fortaleza” são:
1. A crença de que os planos de manejo “enciclopédicos”, com “teses de doutoramento” como diagnóstico, são necessários para manejar os parques. Estes planos de manejo são documentos complexos e caros com mais de 1000 páginas que raramente são utilizados.
2. A (falsa) ideia de que, até que toda terra seja regularizada e assim tornada pública, qualquer visitação deve ser proibida.
3. O uso indiscriminado do princípio da precaução, onde todo e qualquer impacto da visitação é negativo e inaceitável.
4. Em vez de analisar e gerenciar as áreas protegidas, os gestores negam o acesso devido à ausência de investigação científica, desempoderando outros tipos de conhecimentos, como o conhecimento de populações tradicionais e a experiência de montanhistas e escaladores.
5. A ênfase na filosofia de “comando e controle” sobre educação e investimento no engajamento da sociedade.
Há muitos exemplos de restrições de acesso: desde o sistema de zoneamento estabelecido em planos de manejo negando o acesso a 80-90% do parque, até alguns curiosos como um museu da escalada em um parque onde a escalada é proibida e observadores de pássaros proibidos de usar binóculos! Trilhas foram fechadas por mais de 25 anos no Parque Nacional de Itatiaia, sem nenhuma justificativa. Alguns biólogos com posicionamentos extremos argumentam que o acesso a áreas naturais ameaça a biodiversidade porque os visitantes podem carregar sementes de espécies exóticas em suas roupas. Passagens em trilhas que exigem a subida de um costão rochoso de um metro são consideradas muito perigosas e podem causar ferimentos. Gestores de parques têm medo de serem processados se alguém morrer dentro do parque e proíbem a escalada, enquanto o ato de dirigir um veículo, que mata muito mais pessoas por ano, não é questionado. Algumas pessoas argumentam que as proteções fixas de escalada causam um impacto extremamente negativo e, portanto, devem ser proibidas. Caminhadas, alguns dizem, causam poluição da água inaceitável numa área cercada por empresas de mineração. Os exemplos são intermináveis.
O Parque Nacional de Neblina, com 2.200.000 ha no Amazonas, onde fica o pico mais alto no Brasil (2.995m), foi fechado para os visitantes por mais de 15 anos. O ICMBio (órgão gestor das unidades de conservação no âmbito federal) parece estar mais preocupado com os perigos que os visitantes supostamente representam para os Yanomami (a tribo indígena que vive na área) do que os perigos provenientes de garimpeiros de ouro ilegais, traficantes de drogas e assim por diante. No nosso ponto de vista, o encontro cultural poderia apoiar essa comunidade tradicional através do aumento da sua visibilidade e da solidariedade para com os seus problemas e necessidades.
Parque Nacional do Pico da Neblina no Amazonas, é local da montanha mais alta no Brasil. Foto: Nelson Brügger
Trabalhando pela mudança
Este quadro mostra que o Brasil enfrenta muitos desafios no acesso às áreas protegidas. No entanto, temos trabalhado ativamente para mudar esta realidade.
No início de 2000 diversas federações de escalada e montanhismo foram criadas em todo o Brasil, o que eventualmente levou à criação da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada em 2004. Este movimento de união provou ser um passo importante para obter uma maior credibilidade com diferentes atores da sociedade, fortalecendo nosso discurso e empoderando os escaladores e montanhistas. Ao longo desses mais de 15 anos, nos tornamos um importante ator na discussão de questões relacionadas à visitação, conservação e ao acesso.
Em 2002, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, organizamos o primeiro seminário de escalada em terras públicas. Em 2006 e 2012 organizamos os 1º e 2º Encontro de Parques de Montanha, reunindo gestores de unidades de conservação e escaladores/montanhistas para falar sobre regulamentos, visitação e perspectivas para os parques de montanha no Brasil. As federações fazem parte de mais de 20 conselhos consultivos de unidades de conservação em todo o Brasil, aconselhando e apoiando a gestão desses parques em temas relacionados à visitação. Além disso, temos participado na produção ou revisão de planos de manejo, negociando acesso e ao mesmo tempo promovendo a conservação. A CBME está agora negociando com diferentes organizações a criação do movimento “Parques para Todos”, reunindo diferentes atores (organizações de turismo, observadores de pássaros, WWF, CI e outros) para lutar por melhores condições para visitação.
Em 1989, escaladores e montanhistas de muitas partes do país foram a Minas Gerais para defender o Morro da Pedreira, uma importante área de escalada, agora uma Área de Proteção Ambiental perto do Parque Nacional da Serra do Cipó. Foto: André Ilha.
Exemplos de como podemos combinar visitação e conservação sempre foram a alma da comunidade de montanhismo. Na década de 1940, montanhistas angariaram fundos e compraram uma grande área que mais tarde foi doada ao Parque Nacional Serra dos Órgãos. Novamente na década de 1980, o engajamento ativo de montanhistas parou a completa destruição do Morro da Pedreira, a área mais popular de escalada esportiva no país, colocando pressão para a criação de uma unidade de conservação. A criação dos Monumentos Naturais dos Morros do Pão de Açúcar e da Urca no Rio de Janeiro e da Pedra do Baú em São Paulo, destinos clássicos de escalada, foi o resultado de ações de montanhistas e escaladores.
Acima: O MoNa Pão de Açúcar no Rio de Janeiro (foto: Waldecy Mathias) e, abaixo: a Pedra do Baú em São Bento do Sapucaí foram criados como resultado da luta de escaladores, montanhistas e ONGs. (Foto: Eliseu Frechou)
Em 2013 montanhistas juntamente com a Federação de Esportes de Montanha do Rio de Janeiro começaram a implementar a Trilha Transcarioca, com 180 km no coração da cidade do Rio de Janeiro. Esta trilha foi idealizada por Pedro da Cunha e Menezes, que é um forte defensor da visitação. Em 2015, CBME se juntou ao WWF para criar uma trilha de 3.000 km na cadeia montanhosa costeira (Serra do Mar), do estado mais austral, o Rio Grande do Sul até o estado do Rio de Janeiro. Um dos principais produtos dessas trilhas de longa distância é o engajamento da sociedade civil, que tem a oportunidade de não apenas desfrutar a vida ao ar livre, mas também de tornar-se apoiadores dos parque e áreas naturais que visitam. A trilha Transcarioca sozinha tem cerca de 1.000 voluntários ativos.
Bem-vindo à Trilha Transcarioca. Esta trilha de 180 km começa passando por três praias isoladas na metrópole do Rio de Janeiro.
Nossas ações como comunidade, desde projetos de conservação locais até ações no Congresso Nacional, foram seguindo a trilha de enquadrar a visitação como um direito e como uma ferramenta de conservação, promovendo e envolvendo a participação da sociedade civil no debate e trabalho de conservação. Além disso, tanto os brasileiros como os estrangeiros têm o direito constitucional e legal de visitar os parques, o que tem sido largamente ignorado, e a CBME tem chamado atenção para esta questão.
Acreditamos firmemente que o UIAA e a CBME podem desenvolver um grande trabalho juntos a este respeito e damos boas-vindas a todos que venham visitar o nosso país e desfrutar de grandes experiências ao ar livre no Brasil.
Escalada no Salto Ventoso, Farroupilha, que foi reaberta após as negociações entre a FGM, CBME e a municipalidade. Seus paredões desafiam os escaladores a fazer o seu melhor. Foto: Odilei Medeiro.
Artigo gentilmente traduzido do original em inglês para o português por Christina Ljungman.
Nota de rodapé:
[1] Populações tradicionais no Brasil incluem grupos indígenas, quilombolas, populações Caiçara; ribeirinhos das margens dos rios da Amazônia, entre outros. Algumas dessas terras são consideradas áreas protegidas pela legislação brasileira, outras não. Há também alguma sobreposição entre parques nacionais e terras de populações tradicionais. Áreas protegidas sob a gestão de agências ambientais são designadas Unidades de Conservação subdivididas em algumas categorias, como Parques Nacionais e Monumentos Naturais, entre outras.
Imagem principal:
Bloco de Carnaval “Só o cume interessa” liderado pelo Centro Excursionista Guanabara, um clube de montanhismo, abrindo o carnaval 2017 no Rio de Janeiro. O Desfile perto de Pão de Açúcar inclui centenas de escaladores e montanhistas. Foto: Waldecy Mathias.
Fonte: http://theuiaa.org/mountaineering/a-guide-to-climbing-and-mountain-hiking-access-in-brazilian-parks/
Download do artigo em PDF: artigo UIAA.